A ‘Enshittification’ do Tik Tok — Ou como,exatamente, as plataformas morrem

Sobre o texto:
Esse texto é uma tradução desse texto do Wired escrito por Cory Doctorow -> https://www.wired.com/story/tiktok-platforms-cory-doctorow/ , não trata-se de tradução oficial e eu não sou um tradutor profissional, mas acredito que o texto seja importante para minha área acadêmica e quero torna-lo mais acessível aos não falantes de língua inglesa, além desse trecho inicial onde explica que se trata de uma tradução também haverá um trecho autoral que explica o que é uma “Enshittification”, palavra que escolhi não traduzir por não encontrar um bom sinônimo.

 

Enshittification

Segundo o Urban Dictionary, trata-se de algo que ficou ruim, foi transformado em algo ruim, em traduções literais poderíamos colocar como enfezar algo, uma figura de linguagem escatológica para expressar o quão ruim um lugar, plataforma ou algo ficou.

Texto de: Cory Doctorow

Aqui está como as plataformas morrem: Primeiro, elas são boas para seus usuários, então elas começam a abusar dos usuários para tornar o ambiente melhor para os usuários comerciais, finalmente elas abusam dos clientes/usuários comerciais para recuperar o seu valor de volta. Então elas morrem.

Eu chamo isso de enshittification, e essa é uma consequência que aparenta ser inevitável causada pela combinação da facilidade de mudança na alocação de dinheiro na plataforma, combinada com a natureza de um “Mercado de Dois Lados”, onde uma plataforma fica entre compradores e vendedores, cada um refém do outro, arrecadando uma parcela cada vez maior do valor entre eles.

Quando uma plataforma é criada, ela precisa de usuários, então ela se torna de grande valor para usuários. Pense no caso da Amazon: por muitos anos ela operou em prejuízo, usando seu acesso ao mercado de capitais/investimentos para subsidiar tudo que o consumidor comprava. Ela vendia mercadorias abaixo do custo e as enviava abaixo do custo. Ela tinha uma pesquisa limpa e útil, se você pesquisou um produto a Amazon tentou ao máximo colocá-lo no topo dos resultados da pesquisa.

Isso foi um negócio muito vantajoso e bom para os clientes da Amazon. Muitos de nós se amontoaram e muitos varejistas de sede física, de tijolo e argamassa, murcharam e morreram, tornando difícil irem para outro lugar. A Amazon nos vendeu e-books e audiolivros que estavam permanentemente bloqueados em sua plataforma com DRM , de modo que cada dólar gasto em mídia era um dólar que teríamos que perder caso excluíssemos a Amazon e seus aplicativos. E a Amazon nos vendeu o Prime, fazendo com que pagássemos o frete de forma antecipada todo ano. Os clientes principais começaram suas compras na Amazon e, 90% das vezes, não pesquisam em nenhum outro lugar.

Isso atraiu os clientes empresariais, vendedores que acabaram transformando a Amazon em “loja de tudo” que ela havia prometido ser desde o início. À medida que os vendedores se aglutinavam, a Amazon passou a subsidiar seus fornecedores. Os criadores do kindle e do Audible receberam generosos subsídios. Os grandes vendedores do mercado alcançaram grandes audiências e a Amazon recebeu pequenas comissões de cada um deles.

A estratégia significava que era cada vez mais difícil para compradores encontrar coisas em qualquer lugar, exceto na Amazon, o que significava que eles pesquisavam apenas na Amazon, levando os vendedores a terem de vender na Amazon. Foi assim que a Amazon começou a colher o excedente de seus clientes empresariais e enviá-lo aos acionistas. Hoje os vendedores do Marketplace estão entregando mais de 45% do preço da venda para Amazon em taxas inúteis. O programa de publicidade de 3 bilhões de dólares da empresa é, na verdade, um esquema de suborno que coloca seus vendedores um contra o outro, forçando-os a fazer pagamentos para ter a chance de estar no topo de sua pesquisa.

A pesquisa da Amazon não produz uma lista dos produtos que mais se aproximam de sua pesquisa, ela traz uma lista de produtos cujo os vendedores pagaram mais para estar no topo da pesquisa. Essas taxas são adicionadas ao custo que você consumidor paga pelo produto, e o requisito de “nação mais favorecida” da Amazon para os vendedores significa que eles não podem vender por preços mais baixos em outro lugar, então a Amazon impulsionou os preços dos varejistas.

Pesquise na Amazon por “camas de gato”, e toda a primeira tela é de anúncios, incluindo os que a própria Amazon clonou de seus vendedores, colocando-os fora do mercado (terceiros têm que pagar 45% em taxas inúteis para Amazon, mas a Amazon não se cobra essas taxas). Ao todo, as primeiras cinco telas de resultados para “cama de gato” são 50% anúncios.

 

 

 

Essa é a “enshittification”, os excedentes são os primeiros mostrados ao usuários; então, uma vez bloqueados, os excedentes vão para os fornecedores; então, presos no sistema, o excedente é entregue aos acionistas e a plataforma se torna um monte de merda inútil. Das lojas de aplicativos móveis ao Steam, do Facebook ao Twitter, esse ciclo é a “enshittification”.

É por isso que — Como Cat Valent escreveu em seu magistral ensaio pré natalino — plataformas como Prodigy se transformam da noite para o dia de um lugar onde você buscava conexões sociais para um lugar onde se espera que você “parasse de falar com outros e começasse a comprar coisas”.

Esse jogo de azar com excedentes é o que aconteceu com o Facebook. Primeiro o Facebook foi bom para você: mostrou as coisas que as pessoas que você amava e com quem você se importava tinham para dizer. Isso os tornou uma espécie de refém coletivo: uma vez que uma massa grande de pessoas que você gosta estavam no Facebook, torna-se efetivamente impossível sair, porque você teria que convencer todos eles a saírem também, e concordarem para onde ir. Você pode amar seus amigos, mas na maior parte do tempo não consegue concordar sobre qual filme ver e onde jantar. Esqueça isso.

Então seu feed começa a encher de postagens de contas que você não seguia. A princípio, empresas de mídia, que o Facebook enfiou goela abaixo de seus usuários para que eles clicassem em artigos e enviassem tráfego para jornais, revistas e blogs. Então, uma vez que essas publicações dependiam do Facebook para seu tráfego ele reduzia seu tráfego. Primeiro bloqueou o tráfego de publicações que usavam o Facebook para publicar trechos com links para seus próprios sites, como forma de levar as publicações a fornecer os textos completos no feed do jardim murado do Facebook.

Isso tornou as publicações mais dependentes do Facebook — seus leitores não visitavam mais os sites das publicações apenas os via no Facebook. As publicações ficaram reféns desses leitores, que era reféns uns dos outros. O Facebook parou de mostrar aos leitores as publicações de artigos, ajustando o Algoritmo para suprimir as postagens das publicações, a menos que fossem pagas para “impulsionar” os artigos aos leitores que assinaram explicitamente e pediram ao Facebook para colocá-los em seus feeds.

Agora o Facebook colocou mais anúncios no feed, misturado com estranhos que querem dominar a atenção de seus globos oculares. Isso era muito vantajoso para esses anunciantes, cobrando uma fração para direcionar seus anúncios com base nos dossiês de dados pessoais coletados não consensualmente que eles roubam de você.

 

Os vendedores também se tornaram dependentes do Facebook, sendo incapazes de realizar negócios sem acesso aos dados direcionados. Essa foi a deixa para o Facebook aumentar o preço dos anúncios, parar de se preocupar com fraudes publicitárias e conspirar junto com a Google para manipular o mercado de anúncios por meio de um programa ilegal chamado Jedi Blue.

Hoje o Facebook está terminantemente “enshittificado”, um lugar horrível para se estar, seja você um usuário, uma empresa de mídia ou um anunciante. É uma empresa que demoliu intencionalmente uma grande fração dos editores dos quais dependia, defraudando-os em uma “pivot to video”(corte de recursos de conteúdo escrito, demissões e relacionados em editoras) com base em falsas alegações sobre a popularidade do vídeo entre os usuários do Facebook. As empresas jogaram milhões na ideia, mas os espectadores nunca se materializaram e os meios de comunicação desistiram.

Mas o Facebook tem uma nova ideia. Ele afirma se chamar Meta e exige que vivamos os restantes de nossos dias coo personagens de desenhos animados com poucos polígonos, sem pernas, sem sexo e fortemente vigiados. Ele prometeu às empresas que criam aplicativos que o metaverso não os incomodaria como fazia com os editores do velho Facebook. Resta saber se eles conseguirão algum comprador. Como Mark Zuckerberg certa vez confessou sinceramente para um colega, maravilhado com todos os estudantes de Harvard que enviaram suas informações pessoais para seu novo site, 

“TheFacebook”:

I don’t know why.
They “trust me”
Dumb fucks.

Tradução:

Eu não sei por quê
Eles “acreditam em mim”
Idiotas fudidos

 

 

Depois de entender o padrão da “enshittification”, muitos dos mistérios da plataforma são resolvidos. Pense no mercado de SEO ou em todo o mundo energético dos criadores on-line que passam horas intermináveis engajados na inútil plataforma Kreminology, na esperança de encontrar os fios algorítmicos que, combinados, condenam os trabalhos criativos nos quais eles investem seu dinheiro, tempo e energia.Trabalhar para uma plataforma pode ser como trabalhar para um chefe que tira dinheiro de todo contracheque por regras que você infringe, mas que não diz quais são essas regras, pois se ele dissesse você conseguiria infringi-las sem que ele percebe-se e corta-se seu pagamento. A moderação do conteúdo é o único domínio em que a segurança por obscuridade é considerada uma boa prática.

A situação é tão ruim que organizações como a Tracking Exposed alistaram um exército humano de voluntários e um exército de robôs de navegadores descabeçados para tentar desvendar a lógica detrás dos julgamentos da maquina do Algoritmo, ambos para dar aos usuários a opção de ajustar as recomendações que querem receber, e para ajudar criadores a evitar roubo de seus salários que vem com os shadow bans.

Mas e se não houver uma lógica ? Ou, mais especificamente, e se a lógica mudar com baseada nas prioridades da plataforma? Se você for até o meio do caminho na feira do condado, verá algum pobre pateta andando o dia todo com um grande ursinho de pelúcia que eles ganharam jogando três bolas em uma cesta de pêssego.

A cesta de pêssego é um jogo viciado (rigged game). O dono pode usar um interruptor oculto para forçar as bolas a saltar para fora da cesta. Ninguém ganha um ursinho de pelúcia a menos que o dono queira que eles ganhem. Por que o dono deixou o pateta ganhar um ursinho gigante? Para que ele o carregasse o dia todo, convencendo outros otários a investir cinco dólares para ter a chance de ganhar um.

O dono alocou um gigante ursinho de pelúcia para aquele pobre pateta da mesma forma que as plataformas colocam excedentes para os principais atuadores— como um convencimento em um golpe de “Grande Loja”, uma maneira de atrair outros patetas que criarão conteúdo para a plataforma, se ancorando e seu público a ele.

O que me leva ao TikTok. O TikTok é muitas coisas diferentes, incluindo “Editor Adobe Premiere grátis para os adolescentes que vivem em seus smartphones”. Mas o que o tornou um sucesso desde o início foi o poder de seu sistema de recomendação. Desde o início, o TikTok foi muito, muito bom em recomendar coisas para seus usuários. Estranhamente bom.

Ao fazer recomendações de acuradas de coisas que achava que seus usuários gostariam, o TikTok construiu um grande público, maior do que muitos pensavam ser possível, dado o domínio mortal de seus concorrentes, como YouTube e Instagram. Agora que o TikTok tem público, está fomentando seus ganhos e em busca de atrair as empresas de mídia e criadores que ainda estão teimosamente no YouTube e Instagram.

Ontem, Emily Baker-White, da Forbes, contou uma fantástica história sobre como isso realmente funciona dentro da ByteDance, empresa que controla o TikTok, citando várias fontes internas, revelando a existência de uma “aquecedor” que os funcionários da TikTok usam para enviar vídeos de contas selecionadas para milhões dos feeds dos espectadores.

Esses vídeos vão parar nos feeds For You, a recomendação automática, dos usuários do TikTok, que o TikTok descreve erroneamente como sendo preenchidos por vídeos “classificados por um algoritmo que prevê seus interesses orientado por seu comportamento no aplicativo”. Na realidade, o For You só às vezes é composto de vídeos que o TikTok acha que satisfarão sua experiência — no resto do tempo, está cheio de vídeos que o TikTok inseriu para fazer os criadores pensarem que o TikTok é um ótimo lugar para chegar ao público.

 

“Fontes informaram à Forbes que o TikTok costuma usar o aquecedor para agradar influenciadores e marcas, atraindo os mesmos para parcerias ao aumentar a contagem de visualizações de seus vídeos. Isso sugere que o aquecedor potencialmente beneficiou alguns influenciadores e marcas — aqueles com quem o TikTok busca relacionamentos comerciais — à custa de outros com quem não o fez.”

Em outras palavras, o TikTok está distribuindo gigantes ursinhos de pelúcia.

Mas o TikTok não está no negócio de distribuir gigantes ursos de pelúcia. O TikTok, apesar de suas origens serem na economia chinesa semi capitalista, é apenas mais um organismo de colonizador artificial maximizador de clipes de papel que trata os seres humanos como uma parte da flora intestinal inconveniente. O TikTok só vai canalizar a atenção gratuitamente para as pessoas que deseja prender até que sejam aprisionadas, então retirará essa atenção e começará a monetizar.

“Monetizar” é uma palavra terrível que admite implicitamente que não existe uma “economia de atenção”. Você não pode usar a atenção como forma de troca. Você não pode usá-la como uma reserva de valor. Você não pode usá-la como uma unidade de conta. Atenção é como criptomoeda: um token sem valor que só é valioso na medida em que você pode enganar ou coagir alguém a abrir mão de uma moeda “formal” em troca dela. Você precisa “monetizá-lo” — ou seja, precisa trocar o dinheiro falso por dinheiro real.

No caso das criptos, a principal estratégia de monetizar foi fundamentada em fraude. Trocas e “projetos” distribuíram um monte de gigantes ursinhos de pelúcia, criando um exército de bodes crentes de Judas que convenceram seus colegas a entregar seu dinheiro ao dono e tentar colocar algumas bolas na cesta de pêssegos.

Mas a enganação só produz tanta “provisão de liquidez”. Uma hora, você fica sem patetas. Para fazer com que muitas pessoas tentem o arremesso de bola, você precisa de coerção, não de persuasão. Pense em como as empresas americanas acabaram com a pensão de benefícios definidos que garantia a você uma aposentadoria digna, substituindo-a por pensões 401(k) baseadas no mercado que o forçavam a apostar suas economias em um cassino mentiroso, tornando-o o pateta na mesa, pronto para ser coletado.

A liquidez inicial das criptomoedas veio dos ransomware. A existência de um grupos de empresas e indivíduos desesperados e em pânico cujos dados foram roubados por hackers criou uma linha de base de liquidez criptográfica porque eles só poderiam recuperar seus dados trocando dinheiro real por dinheiro criptográfico falso.

A próxima fase da coerção criptográfica foi a Web3: converteu a rede em uma série de cabines de pedágio pelas quais você só poderia passar trocando dinheiro real por dinheiro criptográfico falso. A internet é uma obrigação, não algo bom a se ter, um pré-requisito para a plena participação no emprego, educação, família, saúde, política, educação cívica e até no romance. Manter todas essas coisas como resgate por trás dos pedágios criptográficos, os detentores esperavam converter seus tokens em dinheiro real.

Para a TikTok, distribuir ursinhos grátis “aquecendo” os vídeos postados por artistas desconfiados e empresas de mídia é uma forma de convertê-los em verdadeiros crentes, fazendo com que joguem todas as suas fichas na mesa (all-in), abandonando seus esforços para criar audiências em outras plataformas (ajuda o fato de o formato do TikTok ser diferente, dificultando o reaproveitamento de vídeos para que o TikTok circule em plataformas rivais).

Uma vez fisgados esses artistas e empresas de mídia, a próxima fase se inicia: o TikTok retirará o “aquecedor” que coloca seus vídeos na frente de pessoas que nunca ouviram falar deles e não pediram para ver seus vídeos. O TikTok está realizando uma dança delicada aqui: há tanta “enshitificação” que eles podem ver nos feeds de seus usuários, e o TikTok tem muitos outros artistas para os quais eles querem dar gigantes ursinhos de pelúcia.

O Tiktok não apenas privará os artistas da atenção “grátis” ao desconsiderá-los no algoritmo, mas também os punirá ativamente ao não entregar seus vídeos aos usuários que os inscreveram. Afinal, toda vez que o TikTok mostra um vídeo que você pediu para ver, ele perde a chance de mostrar um vídeo que deseja que ele deseja que você veja, porque sua atenção é um gigante ursinho de pelúcia que ele pode entregar a um artista que está sendo visado.

 

 

 

Isso é exatamente o que o Twitter fez como parte de sua caminhada para a “enshitificação”: graças às mudanças de “monetização”, a maioria das pessoas que o segue nunca vê as coisas que você publicou. Tenho cerca de 500 mil seguidores no Twitter e meus tópicos costumavam obter rotineiramente centenas de milhares ou até milhões de visualizações. Hoje, são centenas, talvez milhares.

Acabei de pagar ao Twitter 8 dólares pelo Twitter Blue, porque a empresa deixou implícito que só mostrará as coisas que publico para as pessoas que pediram para vê-las se eu pagar o dinheiro desse resgate. Esta é a última batalha em uma das guerras mais antigas da internet: a luta de fim-a-fim.

No começo, haviam os Bellheads e os Netheads. Os Bellheads eram os que trabalhavam para grandes empresas de telecomunicações e acreditavam que todo o valor da rede pertencia por direito à operadora. Se alguém criou um novo recurso — digamos, identificador de chamadas — ele só deve ser implementado de forma que permita que a operadora cobre você todos os meses pelo uso. Isso é Software como serviço, Ma Bell style.

Os Netheads, por outro lado, acreditavam que o valor deveria se mover para as pontas da rede — espalhado, pluralizado. Em teoria, a Serviços de computador poderia ter “monetizado” sua própria versão do identificador de chamadas fazendo você pagar 2,99 dólares a mais para ver a linha “De:” no e-mail antes de abrir a mensagem — cobrando para saber quem estava falando antes de começar a ouvir — mas eles não.

Os Netheads queriam construir diversas redes com muitas ofertas, muita concorrência e troca fácil e de baixo custo entre os concorrentes (graças à interoperabilidade). Alguns queriam isso porque acreditavam que a rede um dia seria tecida no mundo e não queriam viver em um mundo de senhores de terras que buscavam renda. Outros acreditavam inabalavelmente na competição de mercado como fonte para inovação. Alguns acreditavam nas duas coisas. De qualquer forma, eles viram o risco de captura de rede, o impulso para a monetização por meio de trapaça e coerção, e queriam evitá-lo.

Eles criaram o princípio ponta-a-ponta: a ideia de que as redes devem ser projetadas de modo que as mensagens dos falantes dispostos sejam entregues aos pontos finais dos ouvintes dispostos com a maior rapidez e confiabilidade possível. Ou seja, independentemente de uma operadora de rede poder ganhar dinheiro enviando a você os dados que deseja receber, seu dever seria fornecer a você os dados que você desejaria ver.

O princípio de ponta-a-ponta está morto como serviço hoje. Idiotas úteis à direita foram levados a pensar que o risco de má administração do Twitter era “acordar shadowbanning”, pelo qual as coisas que você disse não alcançariam as pessoas que querem ouvi-las porque o estado profundo do Twitter não gosta de suas opiniões. O risco real, é claro, é que as coisas que você diz não cheguem às pessoas que pediram para ouvi-las, porque o Twitter pode ganhar mais dinheiro enfezando seus feeds e cobrando um resgate pelo privilégio de ser parte inclusa neles.

Como eu disse no início deste ensaio, a “eshitificação” exerce uma força quase irresistível no capitalismo das plataformas. É muito fácil girar o dial de “enshitificação” até onze. O Twitter foi capaz de demitir a grande parte de sua equipe qualificada e ainda girar o botão todo, mesmo com uma equipe reduzida de trabalhadores H1B desesperados e desmoralizados que estão presos ao navio que afunda do Twitter pela ameaça de deportação. A tentação de “enshittify” é ampliada pelos bloqueios à interoperabilidade: quando o Twitter bane clientes interoperáveis, enfraquece suas APIs e periodicamente aterroriza seus usuários, suspendendo-os por incluírem suas identificações de Mastodon em suas bios, torna mais difícil sair do Twitter e, portanto, aumenta a quantidade de usuários de “enshitificação” pode sendo alimentados à força sem riscos de seu abandono.

O Twitter não será um “protocolo”. Aposto um testículo (não o meu) que projetos como Bluesky não terão nenhuma compra significativa na plataforma, porque se o Bluesky fosse implementado e os usuários do Twitter pudessem solicitar seus feeds com o mínimo de merda e deixar o serviço sem sacrificar suas redes sociais , acabaria com a maioria das estratégias de “monetização” do Twitter.

Uma estratégia de “enshitificação” só tem sucesso quando perseguida em quantidades mensuráveis. Mesmo o usuário mais bloqueado eventualmente atinge o ponto de ruptura e vai embora ou é empurrado. Os aldeões de Anatevka em Fiddler on the Roof toleraram os violentos ataques e pogroms dos cossacos por anos, até que foram forçados a fugir para Cracóvia, Nova York e Chicago.

Para empresas viciados em “enshitificação”, esse equilíbrio é difícil de atingir. Gerentes de produtos, executivos e acionistas ativistas, todos dão preferência a retornos rápidos em detrimento da sustentabilidade e estão em uma corrida para ver quem consegue comer seu pirão primeiro. A “enshitificação” durou apenas o tempo que durou porque a internet se transformou em “cinco gigantes, cada um cheio de capturas de tela dos outros quatro”.

 

 

 

 

Com o mercado dominado por um grupo de monopolistas acolhedores, alternativas melhores não surgem e nos atraem, e se o fazem, os monopolistas simplesmente as compram e as integram em suas estratégias de “enshitificação”, como quando Mark Zuckerberg notou uma massa êxodo de usuários do Facebook que estavam migrando para o Instagram, então ele comprou o Instagram. Como diz Zuck: “melhor comprar do que competir”.

Essa é a dinâmica escondida por trás da ascensão e queda do Amazon Smile, o programa pelo qual a Amazon doava uma pequena quantia em dinheiro para instituições de caridade de sua escolha quando você fazia compras lá, mas apenas se você usa-se a própria ferramenta de pesquisa da Amazon para localizar os produtos que comprou. Isso fornecia um incentivo para que clientes da Amazon usassem sua própria busca cada vez mais enriquecida, que poderia abarrotar de produtos de vendedores que pagavam anúncios, bem como de seus próprios produtos semelhantes. A alternativa era usar o Google, cuja ferramenta de busca levaria você diretamente ao produto que procurava, e então cobrava uma comissão da Amazon pelo clique no site.

O fim do Amazon Smile coincide com a crescente “enshitificação” da Google como ferramenta de pesquisa, o único produto de sucesso que a empresa conseguiu construir internamente. Todos os seus outros sucessos foram comprados de outras empresas: video, docs, cloud, ads, mobile, enquanto seus próprios produtos são fracassos como o Google Video, clones (o Gmail é um clone do Hotmail) ou adaptados de produtos de outras empresas, como o Chrome.

A Pesquisa do Google foi baseada nos princípios estabelecidos no artigo do fundador Larry Page e Sergey Brin de 1998, “Anatomy of a Large-Scale Hypertextual Web Search Engine”,onde eles escreveram: “Os mecanismos de pesquisa financiados por publicidade serão sempre tendenciosos em relação aos anunciantes e longe das necessidades dos consumidores”.

Mesmo com essa compreensão fundamental da “enshitificação”, a Google não conseguiu resistir ao canto da sereia. Os resultados da Google de hoje são um pântano cada vez mais inútil de links de anúncios para seus próprios produtos, anúncios de produtos que não são bons o suficiente para flutuar para o topo da lista por conta própria e lixos parasitas de SEOs pegando carona nos primeiro resultados.

“Enshitificação” mata. A Google acabou de demitir 12.000 funcionários, e a empresa está em “desespero” total com o surgimento dos chatbots “IA” e está fazendo uma pressão em tribunal para uma ferramenta de pesquisa baseada em IA — ou seja, uma ferramenta que não vai mostrar o que você pede, mas sim, o que ele acha que você deveria ver.

Agora, é possível imaginar que tal ferramenta produzirá boas recomendações, como fez o algoritmo antes da “enshittificação” do TikTok. Mas é difícil ver como o Google será capaz de projetar um front-end de chatbot não “enshitificado” para pesquisa, dados os fortes incentivos para gerentes de produto, executivos e acionistas para “enshitificar” os resultados para o limite preciso em que os usuários estão quase irritados o suficiente, para sair, mas não completamente.

Mesmo que consiga, esse equilíbrio quase, mas não totalmente inutilizável, é frágil. Qualquer choque exógeno — um novo concorrente como o TikTok que penetra nas “entranhas” anticompetitivos da Big Tech, um escândalo de privacidade, uma revolta dos trabalhadores — pode levá-lo a grandes oscilações.

“Enshitificação” é realmente como as plataformas morrem. Tudo bem, na verdade. Não precisamos de governantes eternos da internet. Tudo bem que surjam novas ideias e novas formas de trabalhar. A ênfase dos legisladores e formuladores de políticas não deveria ser preservar a senescência crepuscular de plataformas moribundas. Em vez disso, nosso foco político deve ser reduzir o custo para os usuários quando essas empresas atingirem sua data de expiração: consagrar direitos como ponta-a-ponta significaria que, não importa o quão autocanibal uma plataforma zumbi se tornasse, palestrantes e ouvintes dispostos ainda se conectariam com uns aos outros.

E os legisladores de políticas devem se concentrar na liberdade de saída — o direito de deixar uma plataforma que está afundando enquanto continua conectado em comunidades que você deixou, aproveitando a mídia e os aplicativos que comprou e preservando os dados criados.

Os Netheads eram os certos: a autodeterminação tecnológica está em desacordo com os imperativos naturais dos negócios de tecnologia. Eles ganham mais dinheiro quando tiram nossa liberdade — nossa liberdade de falar, de sair, de nos conectar.

Por muitos anos, até mesmo os críticos do TikTok admitiram ainda que relutantes, que, por mais vigilante e assustador que fosse, era muito bom em adivinhar o que você queria ver. Mas o TikTok não resistiu à tentação de mostrar as coisas que ele quer que você veja, e não o que você quer ver. A sua “enshitificação” começou e agora é improvável que pare.

É muito tarde para salvar o TikTok. Agora que ele foi infectado pela “enshittifcation”, a única coisa que resta é taca-lo fogo.

 

 

Este ensaio é originalmente publicado no Pluralistic, o site de Cory Doctorow. Ele é reproduzido aqui sob uma licença Creative Commons Attribution 4.0.
Traduzido aqui por Renan Tomazini, que mantém a creative commons v 4.0 para reproduções do texto.

 

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